O São Paulo tem nome duplo talvez porque suas conquistas quase sempre tiveram impressões digitais de duplas históricas. Muller e Palhinha, Josué e Mineiro, Hernanes e Richarlyson. Rogério e Raí são tão gigantes também porque conseguiam resolver como 11, que nada mais é que 10 + 01. Telê Santana tem nome e sobrenome para a gente se orgulhar em dose dupla. Muricy Ramalho também. Assim como Paulo Autuori.
Tivemos duplas que não conquistaram tanta coisa, mas nem por isso deixaram de ser marcantes. Dodô e Aristizábal, França e Luís Fabiano, Alexandre e Fábio Simplício. Fazia tempo que não víamos dois jogadores se complementarem e formarem uma simbiose em campo, como se fossem um organismo só. Hoje temos: Luciano e Calleri, uma dupla de ataque que se comunica diretamente com o coração dos são-paulinos. E precisamos celebrar antes que seja tarde demais – no futebol, o tempo é ainda mais implacável. Esses dois trintões estão no capítulo final de suas carreiras e escolheram nossos domínios para lutarem até o último pingo de suor.
Há, portanto, uma urgência: desfrutar dessa dupla apaixonante e limitada e que, por ser limitada, é ainda mais apaixonante. Calleri e Luciano são indiscutivelmente piores que todos os atacantes lembrados nessa coluna e também jogaram em times piores do que os duos supracitados. Essa dificuldade toda, na fase de vacas magérrimas quase anoréxicas do São Paulo, só foi conferindo a eles um verniz diferente. Ser protagonista na boa é uma coisa, ser protagonista na ruim é outra parada. E não estou falando isso porque ambos tiveram que tabelar com Pablo, Marcos Guilherme e outras sandices similares, mas porque o peso de uma fila ainda não foi medido por nenhuma balança do planeta.
Luciano e Calleri sintonizaram, desde o primeiro instante em que estiveram lado a lado, no mesmo sentimento: bom, precisamos ganhar por essa camisa de qualquer jeito. Calleri viajou o mundo e marcou menos gols em todos os outros times, somados, do que fez pelo São Paulo. Luciano foi campeão no rival, teve lampejos no Fluminense, não brilhou no Grêmio e interrompeu o nomadismo aqui. Um inquilino que virou proprietário.
Cada um à sua maneira, foram conquistando decibéis no canto da arquibancada. Calleri desde 2016 entrou no imaginário da torcida, Luciano teve que se provar naquele time do Diniz – aliás, justiça seja feita ao treinador que me enlouqueceu, a sacada de trazer Luciano foi brilhante. Calleri é um jogador tremendamente gostável: além dos gols, claro, se mata em campo. Corre, luta, faz pivô, toma porrada. Luciano, por sua vez, tem menos apelo popular: dá xilique, arreia o calção, toma cartão burro. Mas não há um jogador mais decisivo pelo São Paulo que ele, em muitos anos.
Os dois se gostam e isso dá gosto de ver. Os dois se entendem em campo. Calleri sabe que Luciano vai correr por ele, Luciano sabe que Calleri vai lutar por ele. Um time de futebol é muita coisa, mas confiança e lealdade entre os jogadores é o ingrediente capital para a feitura de faixas de campeão. Na pelada, se um adversário chega com maldade no nosso companheiro, é obrigação – ou ao menos deveria ser – dar no meio do rival no lance seguinte. E isso devia ser tão natural quanto correr para recuperar a bola quando um companheiro perde. Há códigos silenciosos que precisam ser respeitados e conservados. Luciano e Calleri são fluentes nesse idioma.
É claro que Calleri não está jogando nada, assim como Luciano também não jogou nada recentemente. É claro que se o São Paulo tivesse um sugar daddy para chamar de seu, como tantos outros times têm, fatalmente gostaríamos de ver outros jogadores vestindo a 9 e a 10. Mas talvez nenhum outro jogador tenha conquistado essas duas numerações justamente pelos limites claros que têm como jogador. Meu colega colunista aqui no Arquibancada Tricolor, o grande Eduardo Tironi, diz que o São Paulo é o time do trabalho. Ele tem razão. Luciano e Calleri, portanto, trabalharam, bateram crachá, viraram noites para vestirem os números mais nobres do futebol, no maior clube do mundo.
Luciano tem 84 gols pelo São Paulo. Calleri tem 76. São 160 vezes em que fomos felizes por causa deles e a alegria é uma ciência inexata. Assim como a gratidão e a saudade. E, para não sentir saudade, decidi ser grato desde já. Assumir uma vista grossa convicta, uma condescendência sem fim. Luci já ganhou meu coração faz tempo, mas Calleri eu cometi o erro de cornetar. Não vou mais. Esses dois fizeram por merecer a leniência. E não só: quando o tempo deles terminar, vamos sentir falta de gritar “Toca no Calleri que é gol” e “É Luciano”. Vamos sentir falta do binóculo e da voadora.
O único tempo que importa – e que existe – é agora.
E, agora, é Calleri com a 9 e Luciano com a 10. A dupla que virou uma palavra só, no plural: ídolos.
Desfrutemos. Em dobro.
Lucca Bopp é escritor e host do podcast Boppismo, que recebe grandes personalidades do esporte e do entretenimento. São-paulino fanático, Lucca defende as cores do Tricolor no podcast “Os 4 Grandes” e é responsável por redigir textos publicitários para campanhas de grandes marcas.
Confira minhas colunas anteriores aqui no Arquibancada Tricolor.
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